Mariana Marinho é produtora do documentário Clementina, que comentamos há alguns dias atrás. Entramos em contato com ela, que nos cedeu esta entrevista muito interessante, e expõe, dentre outras coisas, boa parte do processo de ideia e pesquisa e ainda cita que quem faz cinema independente no Brasil “é porque realmente é um apaixonado. O incentivo para a realização dos filmes independentes é fundamental para revelarmos personagens ou ideias que eventualmente não tenham potencial comercial, mas tenham grande valor artístico e/ou de preservação da memória cultural brasileira.
Segue a entrevista na íntegra com a produtora!
Cinema e Pipoca: Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a história de Dona Clementina?
Mariana Marinho: Tenho uma ligação com a cultura africana e pude me aproximar da riqueza de nossas origens africanas quando a Dona Rosa Filmes, trouxe 70 documentários contemporâneos de diversos países africanos para serem exibidos no Brasil, através da Mostra Africa Hoje.
Além dessa paixão e proximidade com nossas origens afros, a música faz parte de nossas obras, Marco Abujamra produtor do filme comigo é músico e diretor de cinema, dirigiu um documentário sobre o musico, poeta e compositor Jards Macalé, filme vencedor do Festival do Rio entre outros prêmios e o desafio de contar essa história importante de Clementina, veio a convite de um amigo do samba, Luis Moraes e a família de Quelé. Abraçamos com toda dedicação e paixão essa oportunidade de trazermos visibilidade com um olhar poético dessa mulher tão potente, uma das maiores referencias da musica popular brasileira.
Cinema e Pipoca: Existem muitas cenas de arquivo ao longo do filme. Como conseguiram o material e qual foi o trecho mais difícil de conseguir?
Mariana Marinho: A pesquisa foi longa e intensa. Montamos uma equipe, e a frente da pesquisa estava Pedro Paulo Malta, grande conhecedor de música popular brasileira, pesquisador, escritor e cantor de samba. Quanto as imagens, além dos acervos tradicionais, buscamos caminhos inusitados, perguntando para amigos, cinéfilos, sambistas, amantes da musica e cinema.
Teve um trecho que considerávamos estrutural para o filme que foram 6 meses de negociação, mas valeu! Uma curiosidade é que os materiais internacionais foram mais fáceis de serem liberados nos tramites burocráticos, do que as imagens de acervos brasileiros.
Cinema e Pipoca: Quantas horas de entrevistas vocês gravaram ao todo? E houve algum episódio inusitado que poderia nos contar?
Mariana Marinho: Uma das premissas da produção foi não sair filmando; a orientação e troca minha e do Marco com a Ana, que convidamos para dirigir o filme, foi de mergulhar na pesquisa, biografia e história de Clementina e a partir daí definir o que realmente filmaríamos.
Ana Rieper conta sua experiência: “Filmamos cerca de 20 horas de entrevistas, entre as pessoas que conviveram com Clementina e o pessoal do Quilombo São José, em Valença, terra natal de Clementina. Um momento muito especial aconteceu durante a entrevista da cantora Alcione, que teve uma convivência estreita com Dona Clementina, uma forte relação de amizade. As ligação das duas tinha uma forte referência na relação com os antepassados e com a cultura negra, a espiritualidade, o jeito de falar “do povo de antigamente”, segundo Alcione. Em um determinado momento um beija flor ficou parado sobre minha cabeça enquanto conversava com ela sobre essas histórias. Alcione relacionou o fato à presença de Clementina naquele momento, todos ficaram emocionados.”
Cinema e Pipoca: Dona Clementina foi uma mulher a frente de seu tempo pois já falava sobre liberdade e tinha uma independência muito forte. Acredita que, se estivesse viva, poderia ser uma voz forte contra esta sociedade tão violenta e preconceituosa de hoje em dia?
Mariana Marinho: Não tenho dúvidas que se Clementina tivesse viva, sua voz forte de timbre único iria ecoar nos corações da sociedade; fazer lembrar de nossa história para não repetirmos os mesmo erros. Lembraria com seus olhos miúdos e brilhantes e pele negra com bagagem de quem foi neta de escravos que o que não podemos esquecer é o valor da Liberdade! Muitos morreram por ela.
Cinema e Pipoca: Assistindo ao filme, notei que Dona Clementina se transformou num ser quase místico. É uma sensação correta? As pessoas que viveram com ela transmitem isso?
Mariana Marinho: Apesar de sua trajetória difícil de mulher negra, pobre, que trabalhou até seus 62 anos como doméstica sustentando a família, Clementina não perdeu a ternura, imprimindo sempre em seu repertório, timbre e improvisos, sua resistência e luta pelo espaço da mulher e descriminalização racial.
Acredito que essa integridade de quem mantem suas crenças e utiliza de sua arte com toda sua potencia para passar o seu recado com dignidade e poesia – fez com que a Rainha Quelé se tornasse um ser, como você mencionou, quase místico.
Cinema e Pipoca: Se colocar no lugar do outro é uma das maiores dificuldades dos seres humanos hoje em dia. Para vocês que são documentaristas, precisam passar por isso a cada projeto correto? Qual o processo ou o estudo que fazem para entenderem melhor o ambiente e as pessoas ao redor?
Mariana Marinho: Convido Ana Rieper para responder;
“Um documentário é sempre uma leitura, uma representação de um determinado mundo, de lugares, da vida de alguém. Fidelidade, verdade, realidade são idéias frequentemente associadas ao gênero, mas sempre incompletas, mesmo impossíveis, dada a complexidade e a ambiguidade dos fatos e da vida. Essa representação que é o filme deve partir de múltiplas verdades e pontos de vista para o mundo e é aí que a escuta ganha uma importância enorme.
Para o Clementina, como mencionado acima, fizemos uma vasta pesquisa de arquivo – livros, filmes, programas de TV, documentos – para entender sua biografia e as pessoas importantes da sua trajetória. Com isso pudemos, também, compreender os momentos que marcaram a Dona Clementina, importantes para ela. Essa etapa guiou o processo de construção do filme. O objetivo de lidar com a subjetividade como material bruto é uma chave importante para se compreender o outro.
Cinema e Pipoca: Como é fazer cinema independente no país?
Mariana Marinho: Quem faz é porque realmente é um apaixonado. Exige muita entrega e os recursos para a realização das obras são bem mais difíceis que para os filmes comerciais. O incentivo a realização dos filmes independentes produção nacional é fundamental para desenvolvermos as linguagens autorais, revelarmos personagens ou ideias que eventualmente não tenham potencial comercial mas tenham grande valor artístico e/ou de preservação da memória cultural brasileira.
Um dos apoiadores da produção independente é o Canal Curta!; nosso parceiro no filme, com uma curadoria sofisticada e dedicada a arte e cultura , aposta na produção autoral de documentários.
Cinema e Pipoca: Existem outros projetos futuros que poderiam nos contar a respeito?
Mariana Marinho: Nessa mesma linha, com desejo de dar voz a artistas importantes de nossa cultura e com trajetórias potentes, estamos realizando o documentário “Melodia Pérola Negra”, abordando vida e obra de Luiz Melodia, com direção de Marco Abujamra.
Iniciamos o projeto quando Melodia estava bem, aguardamos o tempo do luto da perda de um dos mais importantes cantor e compositor do Brasil; e retomamos processo apaixonados e entregues. O Canal Curta! é parceiro do filme!
Obrigada, uma braço cheio de esperança da arte continuar sendo valorizada em nosso país!
E aí, o que achou da entrevista com Mariana Marinho, produtora do documentário Clementina? Comente conosco!
Obs.: foto em destaque é de Mariana Marinho (produtora) com Vera de Jesus (cantora e neta de Clementina de Jesus) em dia de filmagem do documentário “Clementina”