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A Memória do Cheiro das Coisas | Resenha | Vale a pena assistir?

Coproduzido por Portugal e Brasil, A Memória do Cheiro das Coisas é um dos filmes que estiveram na programação da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Dirigido por António Ferreira, o longa se revela uma reflexão sobre envelhecimento, solidão, culpa e colonialismo, temas que se entrelaçam em um drama silencioso, quase sufocante, que exige do espectador um olhar paciente e empático. É um filme sobre o tempo — o tempo que corrói, que pesa, que se repete — e sobre a dificuldade de se desprender de tudo aquilo que já passou, mas que insiste em permanecer.

O protagonista Armênio, vivido por José Martins, é um homem no fim da vida que habita um lar de repouso, espaço que se torna um microcosmo de suas dores e fantasmas. Martins entrega uma atuação precisa, contida, quase física, traduzindo em cada gesto a fragilidade e o esgotamento de alguém que já não encontra sentido em existir (e talvez por isso siga fumando excessivamente). Seu corpo cansado, seus movimentos lentos e suas pausas intermináveis revelam muito mais do que as palavras poderiam dizer.

Ferreira opta por longas tomadas e planos fixos, que não apenas retratam o ritmo da velhice (e de outros senhores e senhoras naquele local), mas também impõem ao público uma experiência de imersão no tempo dilatado.

A Memória do Cheiro das Coisas e a claustrofobia do cenário

O lar onde o personagem vive é um ambiente de clausura e esquecimento. As janelas não se abrem, os corredores são longos e silenciosos, e a sensação de claustrofobia é constante. Ferreira faz do cenário um personagem à parte: a arquitetura fria e impessoal reflete a ausência de liberdade e de futuro.

É ali que o simples ato de abotoar uma camisa ou andar até o final do corredor torna-se um desafio gigantesco. A câmera, paciente, registra esses gestos mínimos com respeito e brutalidade, transformando o banal em poético e o cotidiano em metáfora. Apesar disso, ainda senti que poderia haver maior fluidez em sequências específicas, pois o projeto parece ter uma duração maior do que, de fato, tem.

Mas A Memória do Cheiro das Coisas vai além da velhice. Ele mergulha também nas marcas do colonialismo português. Armênio é um ex-soldado que lutou na Guerra Colonial Portuguesa, conflito que levou o exército europeu a lutar para manter o domínio sobre colônias africanas como Angola e Moçambique. Essa experiência deixou nele um rastro de preconceito e desumanização que o acompanha até a morte.

Quando Hermínia, uma nova enfermeira negra, chega à casa de repouso, o velho homem a trata com paternalismo e racismo — chamando-a de “minha pretinha” e tocando-a sem consentimento.

Hermínia, interpretada com sensibilidade e força por por Mina Andala, torna-se o contraponto da narrativa. É através dela que A Memória do Cheiro das Coisas propõe uma possibilidade de reconciliação, ainda que frágil, entre vítima e algoz, passado e presente. O encontro entre ambos não é simples — há violência simbólica, há mágoa, há resistência —, mas também existe ali uma forma silenciosa de compaixão. Hermínia não o perdoa, mas também não o ignora.

Essa ideia está expressa já no título do filme. pois o “cheiro” é uma metáfora para o passado que se impregna, que não se dissipa, que retorna de maneira inesperada. Armênio é, em essência, um homem que vive cercado por memórias que ele já não pode controlar. Ferreira transforma esse conceito em imagem: o tempo parece se dissolver, os sons tornam-se distantes, e a narrativa, por vezes, se curva à própria lentidão, criando uma atmosfera quase hipnótica.

Subtexto social em A Memória do Cheiro das Coisas

Há também um subtexto social importante: o filme denuncia não apenas o abandono dos idosos, mas também a indiferença familiar e institucional. A família de Armênio pouco se importa com ele — com exceção de um filho que tenta manter algum vínculo —, e essa ausência reflete um ciclo vicioso de descuido e desumanização. Ferreira sugere que, assim como o colonialismo deixou marcas profundas nas relações sociais, a forma como tratamos nossos velhos revela muito sobre o tipo de sociedade que construímos.

O desfecho não oferece redenção fácil nem respostas reconfortantes e se encerra com a mesma serenidade inquieta com que começou, deixando no ar a sensação de que a memória — seja do corpo, da culpa ou da história — nunca desaparece completamente.

Esse colonialismo se segue, e isso pode ser prejudicial, no fim das contas, já que o pai da enfermeira também lutou ao lado dos portugueses. Reparação histórica até a segunda página e, mesmo assim, não dá pra negar que o espectador sairá da sessão de A Memória do Cheiro das Coisas igual.

A Memória do Cheiro das Coisas
A Memória do Cheiro das Coisas

Onde assistir A Memória do Cheiro das Coisas?

Sinopse de A Memória do Cheiro das Coisas:

Diante da vulnerabilidade da velhice, Arménio é obrigado a encarar os fantasmas do passado, enquanto uma amizade inesperada floresce entre ele e Hermínia. Este filme é um retrato poético e intimista de um idoso em um asilo, explorando a fragilidade da condição humana, a inevitabilidade da morte e a busca por redenção. Aborda questões urgentes da nossa sociedade, como o envelhecimento da população e o racismo estrutural.

Nota: ★★★½

Título Original: A Memória do Cheiro das Coisas
Ano Lançamento: 2025 (Portugal | Brasil)
Dir.: António Ferreira
Elenco: José Martins, Mina Andala, Pedro Lamas, Robson Lemos, Maria Manuel Almeida, Maria José Almeida, Sofia Coelho, Paula Barata, José Castela, Cláudia Carvalho

Curiosidades de A Memória do Cheiro das Coisas

  • O filme foi rodado quase inteiramente em uma antiga clínica, que foi transformada em uma casa de repouso para a produção.
  • A cena em que o protagonista, Arménio, se mistura à multidão de manifestantes foi filmada durante uma manifestação real de 1º de maio em Coimbra, Portugal. Elenco, equipe e atores de apoio se integraram discretamente ao evento ao vivo, capturando o momento com o mínimo de intrusão e uma energia autêntica.

Eder Pessoa

Primeiro vingador do Cinema e Séries (antigo Cinema e Pipoca) e do Pipocast, sou formado em Jornalismo e também em Locução. Aprendi a ser ‘nerdzinho’ bem moleque, quando não perdia um episódio de Cavaleiros do Zodíaco na TV Manchete ou os clássicos oitentistas na Sessão da Tarde. Além disso, moldei meu caráter não só com os ensinamentos dos pais, mas também com os astros e estrelas da Sétima Arte que me fizeram sonhar, imaginar e crescer. Também sou Redator Freelancer.

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